Nesta entrevista, falamos com nosso aluno Marcello Sarmento que migrou do design gráfico para UX Design e hoje trabalha em uma área muito desejada: a de jogos!
Marcello nos conta como é o trabalho na indústria de games, as diferenças, as semelhanças e dá algumas dicas para as pessoas que querem começar na área.
Não perca esse bate-papo super interessante.
Marcello, obrigado pelo seu tempo e, por favor, conta um pouco sobre você
Eu sou o Marcello, sou de Belém do Pará e tenho 40 anos. Então eu já entrei na área de produto um pouquinho tarde, porque eu comecei a trabalhar muito cedo. Eu comecei a trabalhar com 14 anos, a estagiar e tudo mais, e desde o meu primeiro estágio eu comecei a trabalhar com design.
Durante a minha adolescência, tive o privilégio de ter acesso a um computador e a videogames. Tive um Atari, um Nintendinho e jogava também no próprio PC. Então, desde essa época eu vim criando essa relação com jogos, mas que depois foi se dissipando aos poucos.
O meu primeiro contato com Design foi através de um livrinho chamado "Aprenda HTML" da revista Info Exame. A partir disso, eu fui lendo a aprendendo códigos e me interessando cada vez mais, e isso me levou até fazer minha faculdade em Publicidade.
Então, acabei trabalhando como diretor de arte em agência de publicidade durante 18 anos da minha vida.
Mas chegou um ponto em que eu já estava muito saturado da área. Em publicidade você não tem uma boa remuneração e a quantidade de estresse com que você é exposto diariamente em agência é muito grande.
Então, em 2017, eu tive meu primeiro contato com UX, por conta de um grupo no Facebook que eu fazia parte, de designers no Japão.
Eu conheci um UI e UX Designer italiano que trabalhava em um estúdio de jogos no Japão. Então, eu perguntei para ele como que era a dinâmica de trabalho, como era trabalhar com jogos e ele me explicou o dia a dia dele.
E eu achei bem bacana! Mas na época, ficou só nisso. Por necessidade continuei trabalhando com publicidade, mas aos poucos comecei a ler e estudar um pouco mais sobre UX Design.
Foi quando em 2019 eu decidi encarar e entrar de cabeça na área, indo fazer um curso em São Paulo. Era um intensivo em UX e isso abriu as portas pra mim, me fazendo entender os processos e os conceitos de experiência e testes com usuários, que é algo que eu mais gosto de fazer até hoje.
Depois do curso, eu consegui a minha primeira oportunidade em UX numa software house.
Eu estava pronto para me mudar para São Paulo, mas aí veio a Pandemia e eu acabei ficando por aqui, já que todo mundo entrou no modelo de trabalho remoto.
Depois disso, fui convidado para trabalhar numa outra empresa, mas acabei saindo de lá em pouco tempo. Nisso, decidi tirar um período sabático, mas acabei aplicando para uma vaga em outro país, já que um dos meus desejos é trabalhar internacionalmente.
Recebi a devolutiva deles e me fizeram uma proposta. Calhou de ser um estúdio de games, focado em mobile e Web3, como Criptomoeda e NFT, e Play to Earn.
Hoje em dia eu trabalho para um outro estúdio, independente, já com um escopo maior. Eu trabalho como UI e UX Designer, fazendo tanto mobile quanto para jogos de PC e console também.
Eu geralmente faço perguntas relacionadas aos estudos em UX Design, mas no seu caso, sendo bem honesto, eu queria focar no lado dos Games. Então, pra começar, qual é a diferença entre experiência do usuário para experiência do jogador?
Eu vou dar uma visão particular minha que é: não tem muita diferença.
O que acontece de diferente é quando entramos mais nos detalhes, por exemplo de uma persona. Eu não consigo trabalhar com personas nesse escopo de jogos porque, pra mim, esse conceito é um pouco limitante, estabelecer uma persona de um jogador.
Então eu uso arquétipos, eu crio perfis de determinados grupos. Eu aprendi isso na empresa que eu trabalhei. Era impossível estabelecer uma persona fixa.
Então, a primeira coisa que eu tive que fazer foi identificar a nossa fanbase. E foi um desafio bacana identificar que aquele determinado produto tinha cerca de 76,3% de pessoas das Filipinas.
Isso acontece porque os Filipinos abraçaram com todas as forças o Play to earn, porque querendo ou não, é uma questão de criptomoeda. Eu não vou entrar na polêmica de criptomoeda e tudo mais porque isso não cabe a mim. Eu acho que cada um tem capacidade para agir e tecer seus próprios julgamentos sobre isso.
Mas eu vou dar um relato do que é algo que aconteceu lá. Eles conseguem através do Play to earn ganhar criptomoedas que ajudam no dinheiro do final do mês.
Isso aconteceu justamente no período da pandemia, onde as pessoas não estavam conseguindo trabalhar.
Mas enfim, voltando à questão dos arquétipos, eu consegui muito mais construir esses arquétipos e entender melhor quais eram as necessidades e dores deles, do que se fosse só uma persona.
Dica de Leitura: Persona: Por Que É Essencial para Qualquer Projeto em UX Design?
Você sentiu alguma diferença entre construir uma experiência de jogo e uma experiência de um aplicativo? Porque quando falamos de produto digital, a experiência tem que ser bem fácil e fluída. E em jogos existem até situações que jogadores tem bastante dificuldade de passar!
Algo que eu aprendi e entendi foi que existe uma separação entre o UX, a experiência do jogador, e o game design.
O game design é quem vai estabelecer quais são os parâmetros da diversão e felicidade do jogo.
Eu, enquanto UX Designer, tenho foco muito mais em proporcionar menos fricção possível para a experiência do jogador para que seu gameplay não seja afetado.
Então, trazer informações claras no menu é um exemplo. Questões de ergonomia também, se a pessoa joga com joystick, com teclado ou até com a mão, no caso de jogos mobile. Será que é mais prático ter duas mãos no teclado pra jogar, ou ter uma mão no mouse e outra no teclado?
Um projeto nosso está implementando a liberdade de escolha para o jogador jogar na orientação que ele quiser, do celular. Seja vertical ou horizontal. Então, também faz parte do trabalho do UX Designer pensar como ter menos fricção nessas transições.
Então, a experiência do jogador leva essas questões em consideração, diminuir a fricção e o atrito para proporcionar experiências mais divertidas.
A dificuldade do nível de um jogo está relacionada ao game design. E na minha visão o UX está dentro do game design.
Eu sou gamer e já tive até propostas para trabalhar numa empresa de games. Mas no final acabei recusando. Acho que sinto um pouco de medo de trabalhar na área e começar a não gostar mais de jogar. Você passou por algo parecido com isso?
Olha, eu acho que não.
Eu já conversei com algumas pessoas e já me perguntaram se para trabalhar com UX em jogos é preciso ser gamer.
Não, cara.
Quando eu voltei a trabalhar, fazia muito tempo que eu não tinha um console. Eu acabei comprando porque isso me dá uma visão profissional, da experiência do usuário, e não uma visão de jogador.
Porque eu tenho que pensar como que essa dinâmica funciona, quais são esses pontos de contato. Qual plataforma o jogo vai ser lançado? PC, console? Qual console?
Eu gosto muito de fazer isso. E isso não afetou a minha rotina como jogador. Pra ser sincero, hoje eu acabo jogando bem mais no celular do que no console.
E com relação aos softwares? São diferentes do que estamos acostumados em outras indústrias?
Assim como você, eu também já trabalhei em Enterprises e por isso estamos acostumados com Photosohop, uma ferramenta de prototipação, um Sketch, Figma, etc.
Mas em jogos utilizamos a Unity e outras engines.
Sinceramente, eu estou tentando aprender um pouco mais sobre isso hoje. De maneira geral, na indústria de jogos existe uma pessoa técnica focada em trabalhar com essas questões que, basicamente, são traduzir o que você desenha.
Eu estou aprendendo porque a equipe onde trabalho é muito pequena e ter esse conhecimento faz com que a gente consiga manter a consistência do que é feito no design, na parte de concepção, que vai ser entregue para o jogador.
Porque quanto mais conseguirmos trazer de forma fidedigna o que foi desenhado na fase de Discovery, melhor.
Com a minha equipe, eu tento trazer bastante as dinâmicas e metodologias de workshop. Porque gosto de fazer com que as decisões sejam colaborativas e não apenas de uma só pessoa.
Com isso, eu também já consigo fazer uma pequena pesquisa e pegar uns feedbacks de algo que ainda está em fase muito inicial, sem conseguir fazer um playtest.
É difícil fazer testes com jogadores pra valer?
Muitas pessoas não conseguem entender o que é um teste e já vão com a expectativa muito alta. Assim, a gente não consegue coletar dados que sejam muito válidos, porque a mentalidade das pessoas não está alinhada com o teste.
A expectativa também traz outros problemas, porque a comunidade inteira acaba sendo tóxica, e faz críticas nada construtivas, na maioria das vezes,
Então, fazer um teste assim traz variáveis que estão contaminadas e enviesadas, para a sua pesquisa.
O que a gente faz é rodar testes internos, depois com algumas publishers, porque são pessoas que estão preparadas para isso.
Dica de Leitura: Teste de Usabilidade: Guia para Designers e UX Researchers
Essa visão coloca no trabalho do designer um paradigma com relação à pesquisa. No lado de produto a gente tá acostumado a ir num caminho mais linear. Em jogos eu vejo que isso é complexo mesmo
Tem um documentário muito bom sobre o God of War 4, que mostra o processo de construção desse jogo muito icônico.
Todos os desafios, problemas, expectativas, dores que os desenvolvedores passaram.
Tem um ponto lá muito legal que eles mostram. O primeiro playtest do jogo em uma sala fechada. Se não me engano eram 16 pessoas que estão testando. Essas pessoas são profissionais de teste, então é um grupo especializado nisso e é bacana ver como eles trazem os feedbacks.
Isso é algo que eu gostaria de fazer um dia, pegar uma equipe mais técnica e usar para trazer esse balanço. É legal.
Pelo que entendi você caiu na área de games quase que por um acaso. Mas se você estivesse querendo atuar nessa área, o que você faria de diferente quando estava estudando ou montando portfólio?
Aquele meu amigo de 2017 me disse um grande exercício para fazer caso você queira entrar na área de jogos e montar um portfólio.
Ele disse para você pegar um jogo e começar reconstruindo a UI dele. O que você não gosta naquela interface, naquele HUD. O que você não gosta do HUD do Call Of Duty, por exemplo.
Por que você não gosta? Qual incomodo te traz?
Então, você faz uma pesquisa em cima desse problema. Um benchmarking com outros jogos do mesmo gênero. Como eles resolvem esse problema?
Depois que você achar um padrão melhor, faça a sua versão, criando um estudo de caso.
Além disso, recomendo também livros sobre UI para jogos. Tem um livro chamado The Gamer's Brain, da Celia Hodent.
Esse livro é a grande referência de UX e UI para jogos. A autora conta sobre todo o processo. Ela era UX Lead do Fortnite, na Ubisoft.
Para saber mais sobre a relação entre game design e UX, tem um livro chamado The Theory of Fun.
Eu teria feito isso. Investido muito mais na época e entender, do que já chegar desesperado. Porque foi basicamente isso. Quando comecei a trabalhar, pensei "como vou fazer entrevistas com usuários? Como vou fazer isso, como vou fazer aquilo?"
Porque existem diversas particularidades, inclusive demográficas e culturais. Um dos maiores desafios hoje em dia, para mim, é localização. Você escreve um texto em inglês, a tradução para o francês, português e espanhol vai tudo bonito. Mas quando chega em tagalog, que é o idioma das Filipinas quebra toda a UI porque as palavras são quilométricas.
Então, essas particularidades são importantes de verificar. Palavras, símbolos, ícones. É importante pesquisar para não ofender ninguém.
Na sua opinião, o que os recrutadores esperam de quem está querendo ir para área de games?
Acho que é bastante disso que já falamos, ter um estudo de caso focado em jogos, entender como funciona esse mercado e como funciona a experiência para o jogador.
É importante saber demonstrar que você tem conhecimentos, controle de como distribuir os elementos de uma tela, para mobile, computador ou TV. Isso ajuda bastante.
Outra coisa que aprendi numa entrevista que acabei não passando é colocar no portfólio, ou dizer na entrevista, o embasamento das decisões que você tomou, além de colocar um bom storytelling.
Esse feedback foi me dado nessa entrevista que não passei e levei isso como um aprendizado.
E isso também... não ficar frustrado por não ter passado num processo seletivo. A gente consegue aprender bastante com os feedbacks e devolutivas das entrevistas.
Mas é isso, se você está na busca da primeira oportunidade para entrar no mercado de jogos, faz um estudo de caso, um teste, um layout, a sua versão para a UI de um jogo.
Outra dica que posso dar é dar uma estudada na parte de ferramenta gráfica. Você não precisa aprender para se tornar um desenvolvedor, mas precisa entender como funciona a ferramenta dentro do teu escopo como UX Designer.
Isso vai te ajudar a conseguir conversar com os desenvolvedores. Principalmente nos estúdios AAA, os estúdios grandes, eles querem que você tenha conhecimento maior em relação a isso.
Dica de Leitura: 9 Soft Skills Para Designers: Como Se Destacar Na Profissão
Como que você vê essa indústria e oportunidade de carreira para designers?
Eu acho que qualquer pessoa que está focada em trabalhar com design, seja games ou enterprise, tem que abraçar.
A gente vive um momento que é cada vez mais digital. A pandemia veio pra trazer muitas coisas negativas do ponto de vista social, mas do ponto de vista tecnológico ela foi um acelerador.
Antes de entrar para a área de games eu já gostava do que fazia, hoje, trabalhando com jogos eu adoro o que faço. Eu gosto da profissão.
Então, uma dica que posso dar é invista no conhecimento porque isso vai trazer resultado. Todo conhecimento é válido e importante para você criar um repertório, seja ele técnico ou de comportamento.
Lidar com pessoas vai te ajudar muito e se colocar no lugar delas também. Eu, como jogador fico pensando se uma configuração está boa pra mim. Mas o que é bom pra mim pode não ser bom para as outras pessoas.
Então, invista seu tempo em conhecimento, mas cuidado para não se exaurir também. Não vá com tanta sede ao pote porque não dá certo.
No começo da pandemia eu tentei fazer diversos cursos de uma vez e chegou no ponto que ao invés de eu estar aprendendo, eu só estava me desgastando.
Hoje eu levo um ritmo muito mais tranquilo pra estudar.
Crie um hábito para os estudos que seja condizente com a sua realidade.